A linha vai paralela à estrada, entre a cidade e o rio. As estações e apeadeiros estão protegidos por cercas de arame e é preciso subir e descer escadas para apanhar o comboio. Cada estação tem duas plataformas altas e, no meio, existe o fosso onde assentam os carris e corre o comboio.
Numa das plataformas, um homem novo destaca-se dos outros porque avança extraordinariamente devagar e tem um andar periclitante. É cego, arrasta os pés como se esperasse a todo o momento encontrar os degraus de uma escada e faz movimentos ansiosos com o braço direito, explorando o espaço à sua volta. Agita a bengala sem parar, num movimento cadenciado ora para a esquerda, ora para a direita e é impossível não reparar nele.
Estou dentro do carro, presa numa fila de trânsito, na estrada que corre ao longo da linha de comboio, e assisto ao descompasso que existe entre o cego e todos os outros que chegam e partem sem olhar para ele. Ou melhor, sem o ver.
Homens e mulheres, rapazes e raparigas cruzam-se no caminho do cego e afastam-se instintivamente para que a bengala não lhes toque. Indiferentes à necessidade imperiosa que o cego tem de encontrar chão debaixo dos pés e à vertigem que é, para ele, o pequeno abismo que separa as duas plataformas, passam sem se deter. Não lhes ocorre sequer pensar que, naquele lugar, ele precisa especialmente de ajuda para se orientar e não cair no fosso dos carris.
Para quem não é cego, ver o chão que se pisa e caminhar com segurança entre buracos e obstáculos é tão natural como respirar e daí, certamente, muita da distracção dos que passam pelo cego. Em todo o caso, aquele homem vai notoriamente aflito com a falta de referências, com o espaço onde se sente inseguro e, ainda, com a ameaça dos degraus e do abismo entre plataformas. Os seus gestos são inquietantes e os seus passos hesitantes mas, mesmo assim, os outros não reparam. Há um rapaz que vem no sentido contrário, de frente para ele, mas que também se afasta no preciso momento em que se cruza com o cego. Deixa-o passar, encosta-se a um poste e segue-o com um olhar abstracto. Mais um que olha sem ver, portanto.
Vista do carro, a cena dói porque o cego continua penosamente a tentar encontrar caminho sem que ninguém pare para o ajudar. Percebe-se que não é maldade, mas indiferença pura. Ninguém quer saber, ninguém está para se ralar, ninguém está ali para ajudar ninguém e, no fundo, todos se sentem desculpados porque afinal o homem é cego e não vê os que, podendo ajudar, não ajudam.
É muito mais fácil não ajudar um cego do que um coxo porque este olha para nós e percebe a nossa indiferença, enquanto o outro não. Acontece que a indiferença mata e, de uma maneira ou de outra, todos sabemos isso. Sabemos porque sentimos, aliás.
E se a indiferença dos outros nos mata porque será que nós próprios persistimos tantas vezes nesta atitude?
Laurinda Alves
F onte:ACI
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